O
rio Branco (serpenteando Boa Vista)
De todas as águas doces em que meu espírito
se banhou, o Rio Branco é o de maior densidade e beleza. Afluente do Rio Negro,
dizem que o encontro de suas águas oferecem um espetáculo fascinante, antes que
o último desague no grande Amazonas. Com
suas águas volumosas, profundas e traiçoeiras, sua correnteza forte que ondula
a superfície, o Rio Branco margeia a cidade de Boa Vista, no estado de Roraima.
Muitas vezes, me sentei numa estratégica mesa do restaurante SESC Orla para
olhar o movimento das canoas, barcas e lanchas que cortam rápidas suas águas. Dali
vem os peixes que alimentam a cidade. Dourados, tambaquis e pirarucus são
vendidos pelos pescadores que chegam com as canoas abarrotadas, às suas margens
onde o verde brota com força e flores brancas explodem como mil noivas
enfileiradas com seus buquês perfumados nas mãos. À margem direita um mirante
que a prefeitura cuida com esmero. Lá estão os restaurantes, lanchonetes e um
calçadão onde a juventude se reúne em passeio, nos fins de tarde. Ao lado, o
Centro Histórico, o Museu e as lojas de artesanatos, que encantam pela
graciosidade dos motivos indígenas, coloridos como uma festa junina. Atravessando a rua se tem uma igreja alemã de
séculos passados e cor amarelada, transpirando antiguidade. Ao longe a grande
ponte Macuxi, que leva ao município de Cantá, e nos dias de grande cheia do
rio, desaparece submersa em suas águas. Nesses dias, o espetáculo das águas é
estonteante e quase nenhuma embarcação se vê singrando suas águas como em dias
normais.
Meu filho, professor de música na
Universidade Federal de Roraima compôs uma delicada, doce e melancólica música,
Almas do Rio Branco, uma elegia, na
verdade, para homenagear as muitas vidas que foram tragadas pelas águas desse
gigante branco, e cujas almas permanecem em suas profundezas, aumentando o
poder, a fartura e a dor que essas aguas carregam.
Para se ter uma ideia dos perigos do
rio, registro o que aconteceu com um professor da UFRR. Vindo do Rio de Janeiro
por meio de um concurso para dar aula na universidade, saiu com a namorada a
passeio de lancha. No momento em que desceu, no outro lado do rio, foi tragado
de imediato por suas águas e desapareceu levado por redemoinhos internos que o
rio carrega no seu ventre. Naturalmente, foi uma morte que abalou a cidade,
pois um homem jovem que atravessa o país para trabalhar, um futuro promissor
pela frente, tem sua vida ceifada num átomo, por uma força indomável e
traiçoeira da natureza.
Dizem, eu não vi, do tamanho das arraias
e sucuris encontradas, que medem mais de 30m de comprimento. O que sei é que
tudo naquela terra, em se tratando de natureza, carrega majestade e grandeza.
Conhecida como a Amazônia Caribenha, o rio confere à cidade um ar e
um sabor praianos, com seus coqueiros e cajueiros em abundância e os abacaxis
mais doces do Brasil por onde andei. Perguntei ao doutor e historiador,
professor Reginaldo
o porquê daquele sotaque praiano que julguei vir da umidade do rio. Ele contou
que aqueles lugares em tempos de antanho haviam sido mar. Então compreendi a
areia branca e a brisa fresca de todas as manhãs como se fossemos virar a
esquina e dar de cara com o mar. A cidade é pequena e graciosa. Ao seu redor,
as aldeias indígenas conferem a identidade macuxi à Boa Vista. Todos ali
orgulham-se de sua origem macuxi. Todos se denominam macuxi. Fico imaginando
essas terras quando povoadas só pelas tribos indígenas. Seria lá O El Dourado
de que falou Voltaire no Candide? Os
indícios são muitos. O nióbio, que tem alimentado a NASA e os olhos dos
americanos. As pedras preciosas que faíscam no Monte Roraima e que são
extraídas e levadas para a África do Sul para serem lapidadas e transformadas
em joias valiosíssimas, vendidas para o mundo todo. E o ouro no fundo dos rios
da Bacia Amazônica, que tem provocado uma extração perigosa, explorando e oprimindo
os nativos da região. E tantas outras riquezas que se escondem ou explodem na
pequena Roraima sob um céu que atravessa a linha do Equador em sentido vertical
e paira sobre nossas cabeças como se pudéssemos tocar as estrelas e seguir a pé
até a lua. Em Roraima vive-se pertinho do céu, entre os astros e as águas. Luz
e sombras alterando nosso espírito, enquanto a carne padece por falta de
médicos, de infraestrutura, de políticos sérios que se compadeçam da pobreza de
um estado contraditoriamente tão rico mas que depende da luz da Venezuela para
ter direito à eletricidade e vive em pânico, entre apagões, sempre com medo do
escuro eterno por falta de que se ligue o Estado às hidrelétricas brasileiras.
Onde o mercado local é provido com refugos da perversa indústria brasileira: o
detergente, da mesma marca do usado em outros estados é mais ralo; o biscoito
tem menos gergelim que o fornecido à outras capitais do país; o papel higiênico
tem folhas mais finas e custa o dobro do que se paga no centro sul.
Essas precariedades são tão fortes que
empanam a beleza de se viver numa cidade margeada pelas águas majestosas do Rio
Branco.
Campo Grande, 21/11/2018.
Ana Arguelho é titular da Cadeira nº 36 da Academia de Letras e Artes de Mato Grosso do Sul.
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